Pichação: Arte ou Vandalismo?

Os centros urbanos estão estampados com pichações em prédios, muros e até mesmo no asfalto, mas elas não parecem ser entendidas por todos os transeuntes que as vivenciam. Nesse sentido, essa reportagem firma-se na compreensão desta prática, para isso faz-se necessário dividi-la em três seções: da legalidade, da arte e da execução.

Reportagem de Matheus Rocha

O debate sobre os efeitos da arte sempre me fascinou, desde que assisti um trecho do documentário Feast of Friends produzido pela banda The Doors e gravado durante a turnê de verão da banda no ano de 1968. Em determinado momento das viagens do grupo pelos Estados Unidos, o vocalista e letrista James Douglas Morrison entrou em um breve diálogo com um pastor da Igreja evangélica chamado Fred L. Stagmeyer.

O pastor inicia a conversa revelando a experiência dos apóstolos para Morrison:  depois da ressurreição, Jesus deixou seus discípulos e os instruiu para que ficassem em Jerusalém até que algo acontecesse, a orientação do Messias atingiu profundamente todos aqueles que o cercavam. Segundo Stagmeyer de alguma forma esta passagem se relaciona com o espetáculo dos Doors.

Morrison por fim se posiciona dizendo que a banda tenta provocar uma experiência religiosa, no seguinte aspecto: dentro do fenômeno religioso diversas pessoas podem se comunicar em conjunto. Para ele 50% dessa experiência é física e o resto não é possível dimensionar-se.

Essa visão de Jim Morrison sobre a arte como uma forma de comunicação coletiva, se estende além da música. Ela pode ser observada também, em outras formas de expressão artística, como as pichações urbanas. As pichações são uma maneira de seus criadores projetarem suas visões sobre o ambiente das cidades, fixando suas mensagens em espaços públicos ou privados que, eventualmente, podem ser apagadas.

A ideia de comunicação e impacto coletivo se conecta diretamente com o pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari sobre o papel da arte, os filósofos defendem que:  

“(…) os homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suas convenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento, para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão que aparece através da fenda, primavera de Wordsworth, ou maçã de Cézanne, silhueta de Macbeth ou de Ahab (…)”.

Nesta pequena analogia, os filósofos estabelecem que o ser humano define suas próprias convenções, colocando-se debaixo de um guarda-sol, capaz de se proteger de outras perspectivas. Nesse sentido, o artista é capaz de romper esse falso firmamento e como consequência enquadrar o caos a exemplo de obras como: Macbeth ou à maçã de Cézanne.

A pichação, em sua essência, enquadra o caos urbano, dialogando diretamente com o rompimento das convenções. Quando seus praticantes rompem as leis vigentes ao marcar espaços públicos ou privados, eles não apenas criam um impacto estético, mas também criam uma fissura na ordem estabelecida da cidade. 

Essa prática é definida pela lei como um crime ambiental, mas pode ser entendida como uma tentativa de abrir uma fenda no “guarda-sol” social, revelando críticas, questionamentos e reflexões que normalmente não encontrariam espaço na superfície urbana uniforme.

Legalidade

Em entrevista, o Mestre em Direito na área de Direitos Fundamentais e Justiça pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Rafael Ázaro explanou a perspectiva jurídica da pichação. 

Veja a entrevista na íntegra

Segundo a lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, a pichação é considerada um crime contra o ordenamento urbano, o patrimônio cultural e o meio ambiente. O Art.65 define que o índividuo que realizar tal prática pode acarretar em uma detenção de 3 meses a um ano, e aplicação de multa. É válido mencionar, que tal penalidade pode se agravar em casos de pichação em monumentos ou coisas tombadas, podendo atingir uma pena de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa.

A pichação é classificada como crime de menor potencial ofensivo, sob a ótica da lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, de número 9.099, de 26 de setembro de 1995 definida em seu artigo 61: Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei determina pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. 

Caso o infrator de menor potencial ofensivo seja pego em flagrante, a autoridade policial poderá firmar um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO)  que serve de registro sobre o acontecimento e o envolvido poderá ser apenas encaminhado ao Juizado sem a necessidade de pagar uma fiança.

Materiais utilizados para a pichação e as leis administrativas  

Os materiais utilizados tanto por Grafiteiros como por Pichadores são comercializados em casas de Materiais de Construção e podem ser adquiridos também pela internet. A lei 9605/98, em seu artigo 65, diz que é crime praticar a pichação. Todas as Latas de spray aerossol comercializadas trazem estampadas a lei e informam que é proibida a venda para menores de 18 anos.

Estive em uma das maiores lojas de materiais de construção de Salvador, que comercializa uma variedade enorme de tintas  em Aerossol ( os preços variam de R$ 18,90 a R$ 64,90 ) , existem tintas foscas, luminosas, sprays removedores de tintas que  agem em materiais ferrosos e uma variedade grande de marcas e preços para todos os bolsos e gostos.  

Apesar de ser especificado em lei que não podem ser comercializados a menores de idade, a gerente de tintas da loja afirmou que qualquer pessoa pode adquiri-las; apenas tintas tóxicas  e algumas colas possuem um controle mais rigoroso. Segundo ela essa é a prática de mercado. 

Constatei que não existe uma fiscalização mais apurada sobre isso e que apenas sanções administrativas como multas podem ser aplicadas.

Visão Curadoria de Arte

Em entrevista Daniel Rangel, Curador do MAC (Museu de Arte Contemporânea da Bahia) apresenta sua perspectiva sobre a prática da pichação. 

Para Daniel, a pichação sem dúvida alguma é Arte. Os pichadores são artistas que querem utilizar o picho como forma de protesto, eles querem protestar contra o próprio sistema da arte, contra o sistema capitalista, contra o sistema vigente, querem chamar a atenção da sociedade, muitos são pessoas que são marginalizadas.

Os pichadores estão fora dos Museus, das galerias, não conseguem sobreviver do sistema da Arte, mas fazem da Arte o seu meio de expressão, são pessoas que trabalham como padeiros, taxistas, entregadores e fazem do momento da arte um meio de fugir de uma vida dura, e se valem desse meio para colocar pra fora sua revolta, seus sentimentos, questões que incomodam o artista e fazem com que ele produza.

Os pichadores vão a locais onde não é permitido fazer, não querem ser vistos em ação, querem questionar o sistema de forma escondida ou em grupo, através de ações muitas vezes feitas à noite, que buscam desafiar o que está estabelecido.

Os Grafiteiros em contrapartida possuem galerias, tem suas obras reconhecidas, estampam roupas, Skates, fazem parte de uma cultura maior, que é a cultura do Hip Hop, conseguem assim sobreviver da arte. “O pichador não quer viver da Arte, ele usa a Arte como uma outra forma de questão, é como se fosse um poeta marginal, ele não quer vender livros, ele quer fazer poesia, o importante para ele é fazer poesia.”

No MAC é possível ver painéis que foram feitos por Grafiteiros e pichadores que foram convidados por Daniel a mostrar a sua Arte nas paredes do Museu. Ele fica localizado na Rua da Graça 284 – Graça, Salvador – BA, 40150-060 e abre de terça a domingo de 10h às 22h.

Visão do Pichador 

Em entrevista com o Pichador Índio, Matheus Rocha mostra a visão de quem Picha.

Índio é um pichador da cena baiana, bem articulado e carismático estrutura suas argumentações de maneira didática: utilizando diversas comparações que colaboram com a defesa da pichação enquanto arte.

Para Índio o conceito de arte é vago, o que para uma pessoa é arte, para outra pode não ser. Ele afirma que a pichação não é vandalismo, é arte devido a sua estética: “A rua é a galeria do Pichador, onde eles vão expor a sua arte. As letras e a forma como elas são concebidas denotam que o Picho é uma arte, é uma forma de protestar contra o sistema e contra a opressão”.

Segundo Índio existe o Muralismo, O Grafite e a Pichação. Quando alguém contrata um artista para fazer uma obra autorizada em um muro ou uma parede de uma loja isso é Muralismo. Quando é feito um Grafite ou um letramento isso é uma Street Arte. A pichação em São Paulo devido a não existirem muitos muros por causa da grande quantidade de prédios é feita com letras retas, já na Bahia possui uma escrita de letras próprias seguindo o que ele chama de linha da vida.

O grafite, o letramento ou a Street arte são considerados Pichação pela sociedade, esse conceito foi criado no Brasil, em São Paulo, na época da Ditadura Militar, com frases como “Abaixo a Ditadura”. Fica claro que tudo que não é autorizado é considerado pela Lei e pela Sociedade como Pichação.

Os pichadores têm motivações diferentes para realizar suas obras, seja para demonstrar o amor pelos filhos com palavras do tipo “Eu te amo Valentina”, para protestarem querendo apenas serem vistos com uma estética que somente eles conseguem entender. Existe também o desafio, quanto maior a dificuldade para realização do picho, maior o prestígio que o autor terá com a comunidade do picho, muitas vezes a vida é colocada em risco para realizar a pichação.

“Para a Sociedade pichar é vandalismo, é crime ambiental, para mim vandalismo é um muro que você constrói em uma praia”. Índio nos conta que já foi perseguido pela população, teve a barriga aberta sendo internado no HGE e quase morreu, tomou banho de tinta, apanhou com rolinho e pincel, apanhou com truculência da guarda municipal e foi enquadrado no artigo 65. Vale salientar que os pichadores possuem um grupo de apoio, onde eles arrecadam dinheiro para auxiliar quando alguém é preso e precisa de um advogado.

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