Internos que concluíram o curso de refrigeração da UNP fazendo reparos na administração - Foto: Matheus Rocha.

CAMINHOS PARA LIBERDADE: REMIÇÃO E RESSOCIALIZAÇÃO DE DETENTOS NA CADEIA PÚBLICA DE SALVADOR.

Texto de : Matheus Rocha e Gabriel Santana

Em novembro de 2024, o Estado da Bahia possuía uma população carcerária de 13.474 detentos, incluindo os presos apenados e provisórios segundo os dados de Presos Condenados disponibilizados pela Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (SEAP). Do total dos cárceres, cerca de 41% das detenções são ocupadas por indivíduos que ainda não possuem sentença condenatória.

Para a reclusão temporária, a Lei de Execução Penal (LEP) define que a modalidade deve ser cumprida na Cadeia Pública a fim de atender o interesse da Administração da Justiça Criminal e a permanência do preso em local próximo ao seu meio social e familiar.

A Cadeia Pública foi inaugurada em Salvador no ano de 2010 e possui um estilo de construção similar a uma espinha de peixe, já que tem um grande prédio central e dois outros anexos divididos em oito raios que separam os reclusos presentes no complexo. Cada um dos raios possui em seus sinuosos corredores, algumas antecâmaras, em que  os detentos tem acesso a salas de aula em programas de educação que acontecem durante a semana no período de terça a quinta. 

Corredores que cortam a parte de cima dos raios por meio dessas grades os carcereiros podem ter uma visão das celas – Foto: Matheus Rocha.

Na capital, os detidos podem realizar atividades que contribuem com a redução de suas penas, mesmo que ainda não tenham passado por audiências de custódia. O Diretor da Cadeia Pública, Luiz Cláudio aponta que não existem grandes diferenças entre as ações de ressocialização dos provisórios e condenados:  “Normalmente, a diferença que a gente faz nesse caso é que se o preso não é sentenciado, daremos a preferência para que ele realize uma atividade remunerada por conta da possibilidade dele sair. Vamos supor que ele vá à julgamento e seja inocentado, ele trabalhou, não teve remuneração e não vai ter direito a remição? Temos que evitar esse conflito. Nessa situação, eles possuem a preferência, mas os presos como um todo podem ser aproveitados em qualquer um dos regimes de trabalho”. 

Conversa com Luiz Claudio, diretor da Cadeia Pública – Foto: Tony Silva.

Além das atividades laborais, a LEP, também incentiva as práticas educacionais para a reintegração social. Em 2024, internos do Complexo Penitenciário de Mata Escura cumpriram parte do processo de ressocialização e remição de penas por meio  de ciclos de aulas para a realização do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja). O exame avalia aprendizados em áreas como ciências da natureza, matemática, linguagens e ciências humanas, promovendo a remição de penas por meio do estudo.

Na Cadeia Pública de acordo com matéria da SEAP foram inscritas 276 pessoas para realizar o teste. Segundo o 16° Ciclo (janeiro a junho) do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias em todo o Estado a educação conta com 129 salas de aula, sendo que 6 estão distribuídas nos prédios da Cadeia Pública. A presença desses espaços revela o esforço da criação de um sistema punitivo com possibilidade de integração de movimentos de aprendizagem, que passa por desafios estruturais e logísticos, mas que a princípio demonstra tentativas de avanços na promoção de oportunidades educacionais para os detentos.

Observa-se em esfera nacional os efeitos das políticas de incentivo à educação nas penitenciárias, segundo levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça em 2023, com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, revelou que 12,28% da população carcerária participava de atividades educacionais nos meses de janeiro a julho de 2020. Essa porção equivalia a 92.661 internos, divididos entre categorias de: alfabetização (9.765), atividades complementares (9.189), ensino fundamental (31.066), ensino médio (15.180), ensino superior (7.380), cursos profissionalizantes (3.195) e remição de pena pelo estudo e esporte (23.428).

Para a apuração, o veículo A Carestia consultou que os valores do relatório da Sisdepen na realidade constavam um total de 759.518 encarcerados no período de 2020, distribuídos em categorias similares às apontadas no primeiro relatório e seus somatórios resultaram no valor de 92.561 internos, ou seja 12,21% de toda a população carcerária participam ativamente do circuito de educação. Outro critério deixado de lado pelo CNJ são os das Pessoas matriculadas em programas de remição pelo estudo através da leitura, categoria com o número de 23.271 participantes, equivalente a 25,14% dos inscritos em programas educacionais.

Mesmo que a porcentagem pareça pequena a trajetória para orientações de redução de penas por leituras é longa. No mesmo relatório, o órgão destaca a importância dos pareceres técnicos do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), como a Nota Técnica nº 1/2020. Esse documento conduz às noções de uma padronização das atividades de remição de pena por meio da leitura e elaboração de resenhas de livros no sistema prisional brasileiro.

Dentro da determinada orientação, relata-se que uma das primeiras tentativas de atividades educacionais aplicadas em âmbito federal aconteceu em 2009 na Penitenciária Federal de Catanduvas, no estado do Paraná. A equipe responsável pelo setor de reabilitação do Sistema Penitenciário Federal (SPF)  pensava em alternativas para aplicação de atividades voltadas para presos na segurança máxima. Nesse sentido, o caminho encontrado foi que se realizassem leituras de livros, seguidos da escrita de uma resenha. Para os responsáveis, a prática poderia ser encarada enquanto atividade educativa e motivacional, adequada ao contexto do isolamento sentido nas celas individuais.

A medida foi discutida em uma reunião do Conselho da Comunidade em junho de 2009, com representantes do sistema prisional, Poder Judiciário, e sociedade civil, incluindo o juiz corregedor Sérgio Moro. Durante o encontro evidenciou-se o a necessidade de iniciativas  que ocupassem o tempo ocioso dos presos em celas individuais e promovessem a remição de pena como forma de motivação. Com o aval garantido por meio da petição  n.º 2009.70.00.009996-4/PR, Moro efetivou a iniciativa em 12 de junho de 2009, utilizando interpretações da lei que equiparavam a remição pelo estudo ao trabalho intelectual, já assegurado na Lei de Execução Penal (LEP). O projeto começou com a leitura de vinte e dois exemplares do livro Crime e Castigo, de Dostoiévski, e foi expandido a partir desse pontapé inicial.

O experimento ganhou respaldo jurídico com a aprovação da Lei 12.433/2011, que institucionalizou a remição pelo estudo. Em 2012, uma portaria conjunta do Corregedor-Geral da Justiça Federal e do DEPEN disciplinou a remição pela leitura no SPF, estabelecendo que cada detento poderia reduzir até 48 dias de pena por ano, limitados a 12 resenhas no período de 12 meses. A portaria consolidou a remição como política nacional, promovendo educação e ressocialização nas penitenciárias federais.

Ainda sobre as tratativas de atividades educacionais, mais  parâmetros foram estabelecidos nos programas de redução de pena via educação, evidenciando a necessidade das práticas direcionadas à educação não escolar e aos hábitos de leitura, sugerindo fluxos de trabalho para reconhecer e contabilizar as atividades. Em Julho de 2022 via matéria do setor de comunicação,  o braço do judiciário explicou que a resolução do ano de 2021, suplantava a primeira orientação implantada sobre o tema, ainda em 2013. Com semelhanças a  Nota Técnica nº 72/2021,  a solução primordialmente prevê que:

  • “A leitura de livros pode reduzir a pena, contanto que a pessoa presa elabore um Relatório de Leitura avaliado pela Vara de Execuções Penais (VEP). Sendo aprovado, o interno reduz quatro dias de pena, com um limite anual de 12 livros (48 dias). Não é permitido censurar obras, exigir listas prévias ou aplicar provas, e há estratégias para incluir pessoas com deficiência ou dificuldades de leitura, conforme a Lei 13.696/2018.”
  • “Atividades educativas fora do campo de magistério, como  práticas culturais, esportivas e de capacitação, também permitem remição de pena. De maneira análoga, essas categorias devem atender a critérios presentes no ensino formal, como carga horária e frequência registrada. O tempo de participação efetiva é contabilizado para a redução da pena.”
  • “A aprovação em exames que concluem níveis da Educação Básica (fundamental ou médio) reduz a pena em metade da carga horária do curso: 1.600 horas para o fundamental e 1.200 horas para o médio ou técnico. Se a conclusão for completa, acrescenta-se um terço à carga horária. Além disso, cada 12 horas de estudo validado garantem um dia a menos de pena.”

Em 2021, durante o Censo Nacional, o DEPEN e o CNJ publicaram a já referenciada Nota Técnica nº 72/2021 para orientar e promover a leitura, cultura e esportes no sistema prisional, integrando essas ações à política educacional carcerária. O documento reforça o compromisso de garantir o acesso ao livro e à leitura a todos os presos, independentemente do regime disciplinar.

A nota revela recomendações para a execução de dispositivos avaliativos das leituras, a fim de assegurar um  processo idôneo nacionalmente. Faz-se necessário a implementação de uma Comissão de Validação por meio da qual participantes voluntários membros do Poder Executivo, analisem todas as resenhas ou trabalhos confeccionados  e emitam uma devolutiva para cada participante dentro do prazo de vinte dias. O despacho da atividade para os magistrados devem ser feitos e acompanhados de: formulários para elaboração de leitura, formulário padrão para validação dos relatórios e por último a lista de presos cômputos para efetivação da remição.

Documentos para despacho:

O imaginário das orientações do CNJ  parecem já ter se estabelecido nos anais das penitenciárias. Indagado sobre as políticas de remissão, a diretoria da cadeia pública de Salvador, instituição de gerência estadual, informa sobre os procedimentos costumeiros nas reduções de penas: “Sobre essa remissão, funciona da seguinte maneira: o detento lê 1 livro por mês, faz um resumo e isso gera a ele uma diminuição de 4 dias na pena; a cada 12 horas de aula (equivalente a 3 dias) gera uma diminuição de 1 dia na pena, elas ocorrem durante a semana, entre os dias de terça a sexta-feira. Sobre o trabalho realizado funciona: a cada 3 dias de trabalho gera uma diminuição de 1 dia na pena”.

Acervo da biblioteca da Cadeia Pública de Salvador – Foto: Gabriel Santana.

As atividades de educação se estendem até o segundo prédio localizado do lado direito da sala da administração. O seu saguão principal é composto por paredes em tintas amareladas com tons mais pastéis. Este espaço é marcado pelo contraste entre a mistura das paredes velhas esmorecidas e o interior recém reformado. Os privados de liberdade acessam cabines reservadas para atendimentos com seus advogados. Ao lado da pequena sala, parte da diversão e do trabalho intelectual são desenvolvidos na biblioteca. Segundo o 16° Ciclo (janeiro a junho) do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o acervo conta com 1200 obras. São livros de temas variados, desde literatura clássica até contemporâneos como a Torre Negra e It, a Coisa, de Stephen King.

O antigo bibliotecário L.N.S., de 29 anos, é um dos frequentadores assíduos da biblioteca. Ele costuma direcionar seus interesses para literatura estrangeira e obras do movimento realista como: Memórias Póstumas de Brás Cubas do consagrado autor Machado de Assis. O atual serralheiro rememora que no período em que gerenciava o acervo ele procurava seguir algumas metodologias de trabalho: “Separava por gêneros referente ao livro, aí a gente tem muito livro de direito lá, literatura brasileira, gramática, matemática, então tá tudo separado. Então, tem alguns raios que a gente disponibiliza vinte livros ou se tiver alguma galera que queira ler mais, costumeiramente integrantes do raio 3, que não tem facção, enviamos mais livros para lá.” 

Na percepção de L.N.S., nenhum processo de curadoria é realizado dentro da biblioteca, mas durante tratamentos dos detentos com psicólogos eles acessam obras de autoajuda, como o autor Napoleon Hill e seu Atitude Mental Positiva. 

Nesse sentido, ele reconhece que essas obras possuem potencial para motivar as mudanças de pensamento. Ainda nessa seara, ele aponta que a obra bíblica segue o mesmo sucesso, a história do Êxodo, tem uma carga motivacional, já que conta sobre as mudanças da vida de Moisés em sua saída do Egito, fato com o qual compara com a situação vivida pelos detentos.

Para realização de empréstimos, os prisioneiros devem primeiramente acionar o  bibliotecário. Logo o guardião da literatura entrega o livro escolhido ao interessado, que deverá assinar um termo de responsabilidade comprometendo-se a devolvê-lo religiosamente no prazo de um mês.

Oficinas e Cursos Profissionalizantes 

Em 1975, o sociólogo francês Michel Foucault elaborou sua obra Vigiar e Punir  sobre os históricos das cadeias na França e da mudança dos suplícios em praça pública para um processo condenatório amparado em elementos da lei e da medicina (extrajurídico), sem publicização e “moralismo” no ato da punição. Nesse contexto de privação de liberdade, Foucault imagina as dimensões impostas aos indivíduos com liberdade restrita: 

“Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias,  exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (…) o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso.”

A experiência de restrição de liberdade marca, separa, repara e sobretudo transforma. Sentenciados ou provisórios na Cadeia Pública de Salvador podem colaborar com a manutenção do sistema Penitenciário ao passo que também lidam com novos fazeres. Os internos sabem para quê e por que realizam esses trabalhos; ora encaram como um novo ofício ou simplesmente galgam uma redução de pena.

L.N.S. é um homem de 29 anos, jovem de estatura média, teve o ofício de faxineiro logo quando chegou à cadeia pública. Migrou depois para a área de mecânica, era auxiliar, mas mudou de posição. Possuía experiência com a serralheria, trabalhou com seu pai, domina a arte de cortar, furar e soldar. No último semestre tinha realizado um curso de refrigeração ofertado pela Universal das Penitenciárias e havia ingressado em um curso de pintura. Em outubro trabalhava com M.C., de 48 anos, o planejamento da vez era instalar postes para um novo estacionamento para a Cadeia Pública de Salvador, alternavam entre si para colocação de novos pisos intertravados. Havia o anseio de reformar as grades e portas dos raios, mas a prioridade era o reparo da área externa.

Interno tirando o excesso da forma dos intertravados – Foto: Matheus Rocha.

O trabalho começa primeiro na oficina, são cerca de seis internos trabalhando simultaneamente para confecção dos intertravados e meios fios, que são enformados em ritmo industrial e por último levados para serem assados, dentro de fornos de alta temperatura. No dia seguinte, eles podem levá-los aos respectivos pontos de reparo e enfim os fixar. M.C. os posiciona, termina seu trabalho, ele  também é soldador e decide acompanhar L.N.S. na fixação dos postes. Um terceiro homem, meio franzino, já auxiliava seu companheiro, mesmo assim todos juntos realizavam o trabalho designado. 

Os dois colegas reconheciam o potencial da ressocialização por meio do trabalho, quando ambos foram indagados sobre o assunto. O mais novo ponderou sobre a possibilidade da abertura de uma empresa quando estiver livre: “Sim, enxergo sim,  meu pai já trabalha na área,  meu  pensamento é abrir uma empresa fora, à parte, para eu trabalhar além da área que eu exerço na rua. Então, para poder agregar mais valor porque a única coisa que ninguém pode tomar da gente é o conhecimento, então você sabendo trabalhar com pintura, marcenaria, solda,  você vai acabar fazendo tudo, não vai ter que pagar o próximo para fazer algo em sua residência”.

O mais velho, também segue de encontro a opinião do colega. Na sua concepção ele trilha um caminho para estar apto para lidar com a sociedade: “Eu aqui na cadeia pública participo de trabalho como soldador,  participo de cursos, ela também oferece cursos profissionalizantes para a gente. Agora mesmo eu estou fazendo um curso pelo SENAI de pintura industrial e também estou tomando um curso de marcenaria. Tudo isso para que a gente venha se ressocializar e já sair com novas profissões.

Instalação e solda de postes para o novo estacionamento – Foto: Matheus Rocha

Ambos exaltam a atividade laboral dentro do cárcere, quebram a monotonia da rotina todos os dias, são atividades diversas para serem cumpridas, o ganho para saúde física e mental por se sentirem úteis  permite uma segunda chance. L.N.S. sintetiza essa concepção: “Poxa, independente do ato que a pessoa venha a ter feito na vida, que todo mundo é passivo de erro, é muito importante você ter uma oportunidade para exercer uma área, independente do que seja, da limpeza à administração, é gratificante que a gente tenha acesso a muitas situações aqui. Então é muito importante porque está alimentando o desejo da pessoa de poder ter uma mudança, para quem realmente busca isso. Então, depende também da pessoa querer a mudança, querer exercer uma atividade, querer buscar o conhecimento e exercer também”.

Mas as marcas do cárcere, provocam alguns questionamentos: Como é que o senhor acha que a sociedade enxerga o ex-detento? 

M.C.: “Rapaz, é difícil. A sociedade, independente de qualquer coisa, com a gente se ressocializando, trabalhando aqui dentro, lá fora eles vão olhar a gente da mesma forma. Eu creio que eles não vão mudar o pensamento deles referente ao nosso passado. A gente pensa que tem vontade que eles olhem para a gente com bons olhos, tenha pensamentos bons porque a gente tá aqui, a gente errou mas a gente tá pagando e diferente de qualquer coisa, a gente tá trabalhando, tá procurando se manter ocupado, aprender coisas novas, porque aqui a gente aprende elétrica, aprende a mexer com ar-condicionado fazendo curso de refrigeração”.

L.N.S.: “Ressocializado já tem uma imagem diferente, porque quando você chega na unidade, você é visto como um ladrão. Mas, aqui, o que mais ocorre dentro do recinto hoje, você ser negro de comunidade pobre, você é perseguido. Se você for olhar por outros olhares, tem muita gente aqui que está na situação que não tem envolvimento com o tráfico, não fez algo, mas tá pagando. Eu, particularmente, eu tenho como sustentar isso que eu estou falando, eu estou há dois anos preso, eu nunca tive audiência, meu advogado já entrou com vários pedidos de habeas corpus, mas não foi liberado. Mas, não tem nada que me mantenha preso, não tem nenhuma prova contra mim, mas eu estou preso há dois anos. Eu tenho uma filha de sete meses, tenho família, tenho residência fixa, já trabalhei no Banco no Brasil, trabalhava numa empresa, gravei dvd, cd com banda de samba e estou preso, mesmo eu mostrando tudo. Até no dia que eu contei essas situações, eu mostrando a inocência, estou aqui. Então a justiça segue e perante a sociedade, se você não buscar a ressocialização, não mostrar que você é diferente, você é taxado como um ex-presidiário, algo que vai ser eterno para a vida. Mas, como eu falei no início da reportagem, se a gente não buscar melhoria para a gente mesmo, ninguém vai ver a diferença. Se você não tem uma mudança dentro de você, que você não é isso que você está passando aqui, que é só uma fase em sua vida, as pessoas vão sempre ter uma visão diferente”. 

Paralelamente a Lei de Execução Penal, firma-se na garantia de direitos básicos para o apenado, evidenciando o caráter político do corpo por meio dos fundamentais direitos básicos do preso versados no art. 41, que dizem respeito à integridade física e moral dos privados de liberdade. Dentre seus incisos, destacam-se: “VI – exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena”; “VII – assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa”; “VIII – proteção contra qualquer forma de sensacionalismo”; “XI – chamamento nominal”. 

Nesse contexto, a Cadeia Pública de Salvador realiza ações de trabalho interno, sobretudo para a manutenção predial e trabalhos remunerados em convênios de empresas como: Lemos Passos, Compac, Roma Engenharia. No total até a terceira semana de outubro de 2024 havia segundo seu diretor exatamente 100 internos que trabalhavam na área externa, destes 18 possuíam remuneração (10 na Lemos Passos, 5 internos remunerados, 3 remunerados pela SEAP).

A normativa de trabalho interno na Cadeia Pública, fora dos convênios, costuma operar dentro dos raios da seguinte forma: os custodiados atuam somente no setor em que eles estão empregados, com direito a remissão, mas sem remuneração. O serviço interno é variado, passa pela  limpeza, distribuição de alimentos, anotações para  necessitados de serviço médico e até reformas internas.

O complexo em outubro contava com 60 detentos selecionados para dar manutenção geral na unidade, atividades externas do complexo e nisso está incluso: pintura, roçagem, lavagem, construção, capinagem, serviços elétricos e hidráulicos. Esses internos distinguem-se dos que só trabalham internamente, já que podem ter acesso às áreas comuns do Complexo de Mata Escura. O principal marcador entre os trabalhadores acontece por meio do visual: a vestimenta padrão da SEAP é roupa laranja; os internos que têm acesso a circulação na área livre da cadeia pública usam vestimenta amarela. A diferença sobretudo acontece a fim de distinguir quem precisa de uma escolta aproximada e uso de algemas.

O diretor Luiz Cláudio aponta que normalmente os cursos de capacitação tem maior participação de provisórios nesta categoria: “Normalmente, a gente promove cursos de capacitação, de profissionalização para essas pessoas e já tivemos cursos aqui de: noções de construção civil, de elétrica, de refrigeração. Agora (Mês de outubro) estão em andamento dois cursos: um de marcenaria, de 20 horas, promovido pela Igreja Universal através da Universal nos Presídios (UNP) e um de pintor de obras, de 160 horas promovido pelo SENAI”. 

Internos que concluíram o curso de refrigeração da UNP fazendo reparos na administração – Foto: Matheus Rocha.

A Cadeia Pública conta somente com oficinas de produção de insumos a fim de manter sua infraestrutura. Diferente de outras unidades prisionais dentro do Complexo de Mata Escura, como a Penitenciária Lemos Brito que é disposta por módulos de oficina direcionadas ao trabalho com empresas externas. Dentre as produções para consumo interno destacam-se os presos que necessitam se deslocar entre as áreas comuns para a produção de pré-moldados, meio-fios e intertravados.

Os caminhos para distribuição de presos entre os raios, tradicionalmente seguem critérios dispostos na LEP. Mas diversos desafios dificultam essa implementação ressalta o diretor da cadeia: : “Costumeiramente, se você for para a Legislação, a LEP (Lei de Execuções Penais), ela faz a previsão lá de separação por artigo que está respondendo, idade, sexo, regime, mas na prática, hoje, há uma divisão muito mais por questões de segurança, até pelas organizações criminosas.” 

Ainda nesse contexto das divisões, pontua : “ Existe um mapeamento de que a Cadeia Pública custodia internos da região metropolitana de Salvador e aí, em todos os bairros daqui existe uma divisão. Embora o interno não se identifique como um pertencente a uma organização criminosa, ele mora em um bairro que tem atuação de alguma facção. Se ele não ficar aqui próximo a essas pessoas, quando ele sair, vai sofrer alguma sanção, na área externa (no bairro). Então, a gente procura ir se concentrando ali dentro, na medida do possível. Se a gente percebe que realmente não há um envolvimento dele com isso, aí destacamos.  Hoje dois raios não têm facção nenhuma de predominância, a gente vai colocando nesses raios e aí a gente destaca os internos para trabalhar”. 

Relacionado ao desenvolvimento do trabalho, Luiz informa que o detento passa por uma transição e não é algo instantâneo. É realizada uma avaliação do comportamento do detento e internamente, vai fazendo mudanças de localização até ele chegar a estar habilitado para trabalhar na área externa.