Cena do filme: Jogo de Cena - Eduardo Coutinho

Cinema brasileiro: refém do estrangeiro

Produções nacionais desaparecem do ranking de filmes mais vistos no período de 2022 e 2023, segundo Itaú Cultural.

Reportagem por: Allan Alcantara, Cauan Borges, Gabriel Santana, Felipe Anjos, Lorena Almeida e Mateus Pereira.

Ranking dos 20 filmes mais assistidos no país nos anos de 2022 e 2023, listado pelo Itaú Cultural, inclui apenas produções internacionais, deixando claro que algo está muito errado na distribuição dos filmes nacionais. Especialmente ao considerar que, em 2019, pelo menos quatro filmes nacionais figuravam no top 20.

Mas quais são os fatores que realmente impedem a valorização e o avanço mercadológico do audiovisual nacional?

Em entrevista realizada para a reportagem, o professor de cinema Euro Azevedo nos conta sobre a sua perspectiva acerca da falta de evolução do cinema nacional:

“Subdesenvolvimento, como é que o Brasil, sendo considerado um país que não é de primeiro mundo, vai dar conta de um cinema, mas mesmo assim também considerar que o Brasil é um imenso mercado consumidor de cinema. Tem até um pouco da ideia do complexo de vira-lata, do Nelson Rodrigues, essa coisa de você se olhar como um olhar estrangeiro e não saber direito quem é você. Então, se você for procurar literatura sobre o cinema, os críticos do cinema brasileiro, Paulo Emílio Salles Gomes, Jean-Claude Bernardet, esses caras todos vão dizer que o cinema brasileiro se debatia no subdesenvolvimento, que ele tentava parodiar e imitar filmes americanos, mas não era bem-sucedido nessa ideia.”

Imagem: Justine Goode ; NBC News / Universal / Warner Brothers

Olhando para essa perspectiva da predominância de filmes estadunidenses nos cinemas brasileiros, é evidente que as produções nacionais estão sendo reprimidas e colocadas como coadjuvantes por filmes estrangeiros, uma situação que estava sendo agravada por conta da falta de consideração estatal pela cota de telas, o que pode mudar, já que no dia 19 de junho foi aprovada a regulamentação da Lei nº 14.814, onde as salas de cinema voltarão a exibir número mínimo de filmes nacionais em cartaz, norma era mantida por medida provisória, mas estava inativa desde 2021.

O presidente Lula e os ministros Margareth Menezes (Cultura) e Paulo Pimenta (Secretaria de Comunicação) durante a sanção de leis do audiovisual. Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

A falta de interesse do público geral também impacta consideravelmente o avanço do cinema nacional, para se ter uma noção, apenas 1,4% dos brasileiros que frequentam salas de cinema, até agosto de 2023, vão assistir às exibições de filmes nacionais. O resto, 98,6%, foi às salas de cinema para assistir a produções estrangeiras. Em comparação com os dados dos anos anteriores, é perceptível uma queda significativa no engajamento do público por produções nacionais, pois entre os anos de 2012 e 2019, a média de idas era de 13%, segundo dados coletados pelo Sistema de Controle de Bilheteria.

Mas porque isso acontece?

“Só que tem muito do lance de que as pessoas não possuem o hábito de assistir ao cinema brasileiro. A gente não tem o hábito de ouvir português nos cinemas. Então, eu acho que quando a gente ouve, a gente já estranha […] Eu acho que existe tanto um lado de dificuldade mesmo de se desenvolver e de vicejar numa região em que já tem outras maneiras de se fazer cinema que já vicejam de uma forma muito intensa, além de que o Brasil tem bastante condição, tanto cultural quanto material, de alcançar pelo menos o mesmo espaço que as novelas indianas, que os filmes indianos alcançam. O Brasil tem, por exemplo, o savoir-faire das novelas da Globo.”, explica o professor Euro Azevedo.

A perspectiva do cineasta acerca do estudo dessa problemática pode ser enriquecedora, com isso, entrevistamos o diretor e antropólogo Tiago de Aragão, criador da independente produtora audiovisual brasiliense “Salcine”.

Cena do filme “A Câmara” da produtora Salcine

“Infelizmente e felizmente aqui no Brasil, para a gente conseguir produzir como uma produtora de cinema é preciso empreender, dar conta da burocracia, aprender como abrir CNPJ, fazer cadastro na ANCINE, cadastro de Clube de Apoio à Cultura do Distrito Federal, é esse desafio de você, de certa maneira, jogar em diferentes posições. Ao contrário de países que têm a Indústria Cultural individual, a cadeia mais desenvolvida, às vezes tem esse papel mais consolidado. Aqui a gente chega e tem que também pensar na distribuição”. Elabora Tiago.

Tiago explica sobre como o Estado influencia nas produções culturais aqui no Brasil: “Produzir aqui no Brasil e no mundo todo, um pouco menos nos EUA, o Estado acaba sendo um participante importante no fomento da cultura. Principalmente no cinema, o Estado sempre está envolvido com a construção de editais, as políticas públicas de produção de cinema. E aqui no Brasil, por passar por uma instabilidade política, às vezes tira de certa maneira, a previsibilidade dos editais”.

O cineasta conta que tem muita dificuldade de colocar um filme nacional em cartaz nos grandes cinemas, pois as maiores distribuidoras pensam apenas em bilheteria, além da extrema dificuldade de competir contra o monopólio de Hollywood, pois esses filmes possuem tanto dinheiro de publicidade que podem ir direto para as telonas do cinema sem precisar passar por festivais e/ou editais.

Após explicar sobre o monopólio de Hollywood, ele conduz um pensamento acerca dos fatores que fazem o cinema nacional ser tão desvalorizado pelo próprio país.

“Eu acho que a questão do cinema nacional não ter nenhuma sinalização de que ele é desvalorizado é porque ele não ocupa espaço na sala de cinema. Eu acredito que não seja uma questão de gosto do público, eu acredito que na verdade, é pelo público não conhecer e aí não tem como o público gostar.”, diz Tiago.

Créditos: Instagram da Salcine

Tiago conta que a maior dificuldade para fazer a filmagem é conseguir recursos financeiros e para isso utiliza um Fundo Setorial do Audiovisual, é um fundo que fica sendo retroalimentado através dos impostos cobrados para passar os filmes na TV ou nos cinemas e esse fundo nacional consegue financiar os novos filmes.

O antropólogo adiciona que essa falta de recursos financeiros é algo que impacta bastante as menores produtoras de filmes, pois as maiores as produtoras precisam menos desses recursos, porém elas têm maior facilidade de conseguir esse investimento estatal, e por muitas vezes, os editais privilegiam as grandes empresas: “Têm menos grandes produtoras disputando, tem mais dinheiro para elas e menos grandes produtoras disputando. E aí chegam os editais voltados para as menores e é muita produtora pelo Brasil todo”.

Contexto histórico

Um grande fato histórico que levou o mercado cinematográfico nacional sofrer mudanças estruturais: a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Isso acarretou uma série de consequências estruturais como: a diminuição da produção europeia, as salas de exibição brasileiras que foram dominadas pelos filmes de Hollywood, pois esses filmes entravam no Brasil de maneira isenta das taxas alfandegárias e esse foi fator preponderante para também enfraquecer o cinema produzido localmente.

Foi nas décadas de 1930 e 1940 onde as distribuidoras de filmes dos EUA que estavam no Brasil passaram a investir em publicidade com o intuito de equipar as salas para que fosse possível de vender os seus filmes falados (talkies). Com uma ampla aceitação do público que se adaptaram às legendas e se acostumaram também com a estética americana peculiar que foi denominada de: “cinema clássico” de Hollywood (narrativas lineares, com início, meio e fim bem determinados, geralmente com finais felizes).

Entretanto, as produtoras nacionais não foram capazes de impulsionar o mercado: dos 409 filmes lançados em 1942 no Brasil, apenas um era brasileiro. Segundo a Academia Internacional de Cinema.

Indicações

O cinema é a arte da imagem e do diálogo, onde o cineasta busca passar o seu amor por narrativas através do poder imagético, permitindo-lhe filmar o momento frente a câmera, que automaticamente se transforma em memória. A sétima arte é fundamental para o enriquecimento cultural de uma sociedade, tornando-se um meio de comunicação com um potencial ontológico e antropológico, sendo amplamente consumido. As produções brasileiras são ricas e com um potencial gigantesco, o amor pelo cinema pode salvar e erguer o cenário atual da sétima arte brasileira, expondo a visão artística de cineastas brasileiros em papel de destaque. Só não gosta do cinema nacional quem não o conhece.

Quer conhecer mais produções brasileiras? Segue uma lista com 4 indicações de filmes nacionais de diferentes gêneros para aumentar o seu conhecimento cinematográfico. 

1) CABRA MARCADO PARA MORRER (1984) – de Eduardo Coutinho

Cena registrada em 1964, como previa o roteiro original que o IMS lança agora em e-book, e incluída no documentário lançado em 1984. Acervo Eduardo Coutinho/ IMS

2) SEM CORAÇÃO (2023) – de Nara Normande e Tião

Cena de ‘Sem Coração’, filme de Nara Normande e Tião. Foto: Festival de Veneza

3) CIDADE BAIXA (2005) – de Sérgio Machado

Cidade Baixa (2005, Sérgio Machado)

4) PROPRIEDADE (2022) – de Daniel Bandeira

Cena do filme ‘Propriedade’, de Daniel Bandeira. Foto: Símio Filmes
  1. Adorei a forma de como foi retrato o cinema brasileiro, espero poder ler mais publicações como essa nesse site

  2. Adorei como foi abordado o preocupante declínio das produções nacionais no ranking dos filmes mais vistos entre 2022 e 2023. A análise é rica e detalhada, trazendo à tona a realidade alarmante de que, mesmo com um passado de sucessos, o cinema brasileiro tem perdido espaço para produções.

    Gosto muito de algumas produções brasileiras, mas ultimamente tenho visto cada vez menos “cuidado” com essas obras atuais.

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