Fazendo fuxico e costurando afetos

Artesãs de Itapuã, em Salvador, unem afeto e sustentabilidade em roda de fuxico

Por Bruna Rocha e Dara Medeiros

Com sutileza e paciência, a artesã Verônica Mucunã, 38, ensina as novas participantes da Roda de Fuxicaria a construir o primeiro fuxico, trouxas de tecidos, da vida dela. “Pega o tecido, estica direitinho, faz uma marcação em formato de círculo com caneta ou lápis, corta rente a demarcação e começa os trabalhos, alinhava, arremata e tá pronto o fuxico”.

A artista e artesã se reúne com mulheres toda quarta-feira, no Espaço Verde, no bairro de Itapuã, em Salvador, para fazer fuxico e também fuxicar, rir, desabafar e chorar sobre os acontecimentos do dia a dia. 

“Em 2020, estoura a pandemia e o confinamento quase desencadeou em mim uma crise de  pânico, assim como em outras pessoas. Lembrei então dos fuxicos e recomecei a fazê-los. Só então entendi a necessidade dessa atividade”, conta Verônica.  

Porém, com a instabilidade nas medidas de distanciamento social, somente em 2023 que o grupo ganhou fôlego: “Em nossos primeiros encontros convidei 3 mulheres: Minha mãe, em depressão, minha amiga que é fuxiqueira há muitos anos e minha sobrinha adolescente”.

Com apenas 11 anos, a líder da roda de fuxicaria foi apresentada à arte do fuxico por uma anciã no mundo do artesanato. Na época, Verônica conta que não teve muita paciência para adquirir os saberes. 

“Aprendi a fuxicar em 1995, aos 11 anos, com uma mestra bordadeira que muito sabia e queria compartilhar seus conhecimentos com as mulheres do bairro. Não tinha paciência para os bordados, e não ter paciência para aprender o que pode vim ser uma fonte de renda é tolice”, diz. 

As costuras do fuxico carregam em si um passado de histórias para a população afro-brasileira. Segundo o artigo “Representações verbo-visuais da cidade de Aracaju, em folhetos de cordel”,  desenvolvido pela pesquisadora Jeane Cardoso, o artesanato ganhou popularidade no período colonial do Brasil. 

Existe há mais de 150 anos, sendo considerada uma tradição do Brasil que remonta ao período colonial onde os tecidos na época eram artigos de luxo destinados apenas às Sinhás, e os restos, as sobras desses tecidos as escravas juntavam e se reuniam nas senzalas para cozê-los com pontos largos (alinhavos) e ao mesmo tempo cochichavam, mexericavam sobre a vida dos senhores”

Outra característica ligada ao fuxico é o ato de  reciclar, reutilizar, reaproveitar e ajudar a minimizar os impactos da ação humana no meio ambiente, em direção a um modo de vida sustentável.  

Fuxiqueiras de Itapuã/ Fotos: Bruna Rocha_Entre Becos

O LIXO PODE VIRAR LUXO 

O Brasil é responsável por produzir 9 bilhões de novas peças de roupa por ano, valor equivalente a 42 novos itens do vestuário por pessoas em apenas 12 meses.  Os dados são do relatório Fios da Moda, realizado a partir da parceria do Instituto Modefica e a Fundação Getúlio Vargas.  

Em entrevista para o Fantástico, em fevereiro de 2022, a  diretora presidente do Instituto Modefica falou sobre o assunto: “Quando você compra roupa, invariavelmente vai se desfazer dela. Seja passando para alguém, seja jogando no lixo ou devolvendo para reciclagem ou reutilização. A partir daí, a cadeia continua, porque você tem o processo de recolher essas peças, transformá-las e inseri-las no ciclo novamente. Hoje, normalmente ela para no aterro”.

A indústria têxtil cresce em torno de 5,5% a cada ano. São 2,4 trilhões de dólares anuais movimentados no mundo todo. Apesar do lucro, o descarte despreocupado com o meio ambiente proporciona um enorme desperdício de tecidos. 

O relatório produzido pela “A new textiles economy: Redesigning fashion’s future”, lançado em novembro de 2017 pela Ellen MacArthur Foundation, com o apoio da estilista Stella McCartney mostra que a cada segundo, o equivalente a um caminhão de lixo cheio de sobras de tecido é queimado ou descartado em aterros sanitários.

Verônica costura laços sociais ao conscientizar as pessoas sobre o descarte irregular de resíduos têxteis. Naturalmente, as fuxiqueiras de Itapuã estimulam a reciclagem e o aproveitamento total dos resíduos têxteis, fazendo brincos, almofadas, lustres, bonecas e mais.

Do fuxico a gente faz tudo, boneca, árvore, brinco, pulseira, biquíni, saída de praias, até uma casa se a gente quiser fazer de fuxico, a gente faz”, conta Juvênia Maria, 60, moradora do bairro de Nova Brasília de Itapuã e artesã há mais de 20 anos.

A partir dos trabalhos com o artesanato, o empreendimento AFruxiqueira foi desenvolvido, a fim de estimular o consumo de peças desenvolvidas a partir da sustentabilidade. 

“Ao longo dos trabalhos com fuxico, ideias de como fazer para ganharmos dinheiro  foram surgindo e comecei a fazer acessórios, compartilhei com as meninas , eu e o meu namorado fomos em busca de um nome para esse empreendimento. Até que chegamos ao nome AFruxiqueira”, diz Verônica. 

Segundo o estudo da consultoria Research And Markets, o mercado da moda sustentável tem prometido movimentar US$8,2 bilhões este ano de 2023. 

A partir dos retalhos de tecidos novas peças podem ser criadas/ Foto: Bruna Rocha_Entre Becos

ELAS NÃO DÃO PONTO SEM NÓ

O trabalho artesanal requer tempo, paciência e dedicação, mas nem sempre é necessário se isolar para ter o produto final desejado. Longe da busca incansável pela perfeição, o fuxico nasce com a naturalidade de mãos habilidosas. Entre linhas e tecidos, corações se abrem e diálogos se atravessam para que trocas de saberes aconteçam.

E elas não dão ponto sem nó, porque ao criar a Roda de Fuxicaria, Verônica Mucunã já pensava que o projeto seria um espaço de afeto, acolhimento e confiança, perfeito para que as integrantes pudessem compartilhar as dores e delícias da vida.

O propósito é estar perto de pessoas queridas dialogando sobre vida, ter desabafos de todas as formas e todo assunto que surge é abordado, nada passa despercebido. A Roda é aberta e gratuita, deixando livre quem queira contribuir como quiser e puder”.

De portas abertas e ouvidos atentos, a iniciativa não se apega à idade e nem restringe para receber novos participantes. “Gosto de gerações se encontrando, é de uma grande riqueza”, revelou a idealizadora.

Para Verônica, o fuxico é cura, pois foi fuxicando que ela lidou com os medos e inseguranças do período pandêmico. Enquanto controlava as agulhas, ela aprendeu a controlar a ansiedade, a síndrome do pânico e todas as emoções que passaram a desafiá-la.

Atualmente, ela recomenda a Roda de Fuxicaria como um santo remédio: “O fuxico voltou a minha vida pela dor e em minutos tornou-se meu salvador”.

Venha fuxicar e conhecer mais sobre a Roda de Fuxicaria