Com educação gratuita, professora cria pré-vestibular com raízes no Subúrbio

Projeto Educacional Raízes reforça os estudos e potencializa o acesso de jovens do Subúrbio Ferroviário de Salvador às universidades brasileiras.

Por Bruna Rocha e Dara Medeiros

A rotina de um vestibulando periférico costuma ser desafiadora. Enquanto se carrega o sonho de passar em uma universidade e ser, na maioria das vezes, a primeira pessoa da família a alcançar o ensino superior, as condições sociais tornam o trajeto mais longo e cansativo. Pensar no abismo social que afasta os jovens do bairro de Alto de Coutos, no Subúrbio Ferroviário de Salvador, da faculdade, foi o que motivou a professora Maiane Soares, 33, a criar um projeto pré-vestibular com baixo custo em 2017.

Pertinho de casa, jovens entre 16 e 21 anos tiveram a chance de se preparar para o vestibular no Projeto Educacional Raízes, carinhosamente apelidado como ‘Projedur’. Na época, eles pagavam R$80 reais de mensalidade para contribuir com o aluguel do espaço e o transporte dos professores, que eram voluntários e nunca receberam nenhum tipo de auxílio privado ou governamental.

Primeiras turmas do ProjEdur/ Fotos: Arquivo pessoal

Um ano se passou e os frutos da iniciativa começaram a surgir, chamando a atenção de mais pessoas e fazendo o número de alunos aumentar consideravelmente. No famoso ‘boca a boca’, um aluno convidou outro e o Projedur estruturou e desenvolveu ainda mais as atividades realizadas durante o ano letivo.

Veja o que uma potência feminina é capaz de criar:

2019, O ANO ONDE A ASCENSÃO VIROU SINÔNIMO DE QUEDA

Depois de tanto sucesso e adesão, o Projedur estava no seu auge. Os alunos estavam interessados em continuar, uma escola pública no bairro de Alto de Coutos cedeu espaço para que as aulas acontecessem e a mensalidade já não era mais necessária. Na época, os estudantes pagavam apenas pela camisa do projeto e levavam 1kg de alimento no momento da inscrição para que cestas básicas fossem formadas e doadas para famílias carentes da localidade. Tudo caminhava bem, até que os primeiros comunicados de desligamento começaram a surgir.

Os professores voluntários, também periféricos, estavam batalhando para construir o seu próprio sucesso profissional e pessoal. Lecionar para os jovens e adolescentes do Projedur enchia o coração de alegria, mas não pagava as contas. Aprovados em concursos públicos, uma boa parte deles precisou dar adeus ao projeto por não conseguir conciliar a carga-horária das aulas. Desfalcada, a coordenadora precisou se reinventar para não fechar as portas. 

Em 2019, apenas aulões e oficinas esporádicas foram ofertados pelos quatro professores que permaneceram e algo surpreendente aconteceu: novos alunos chegaram. Os novatos já não eram tão novos assim, porque as aulas temáticas e de matérias específicas chamaram a atenção de pessoas mais velhas e que não desejavam prestar vestibular, apenas agregar conhecimento, estimular a mente e ter uma boa ocupação.

Um novo plano de aula para agregar esses dois públicos estava sendo preparado para 2020, até que a Covid-19 chegou e bagunçou tudo ao redor do mundo, incluindo o projeto. Na época, a modalidade online não era comum e foi preciso um semestre de preparação e adaptação para que o ProjEdur conseguisse se estruturar e voltar a funcionar no meado daquele ano. 

Ouça agora o percurso trilhado por Maiane Soares no período da Pandemia:

Apesar dos pesares, a virtualização das aulas do ProjEdur teve as suas vantagens e o curso recebeu alunos de outros bairros, cidades e até estados. Afinal, se já ter um pré-vestibular gratuito no próprio bairro era bom, ter essa mesma possibilidade dentro de casa era ótimo. O sucesso foi tamanho que o ProjEdur se manteve online até hoje.

BALANÇA MAS NÃO CAI

Mulher, preta e periférica, a professora de Língua Portuguesa nunca viu a desistência como opção. Para ela, ofertar aulas pré-vestibulares para a comunidade em que nasceu e cresceu era mais do que fazer uma ação social e se tornou um propósito de vida. Há sete anos, ela prometeu para si mesma que daria de volta à sociedade a chance de estudar para ingressar em uma faculdade, chance essa que ela também recebeu quando ainda era uma adolescente cheia de sonhos e teve a oportunidade de fazer um curso no centro da Salvador.

Formatura de Maiane Soares/ Foto: Arquivo pessoal

A promessa foi feita enquanto ela estava na cerimônia de formatura do curso de Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia, em 2016. Com o diploma nas mãos e um grande sorriso no rosto, Maiane também decidiu que o curso seria no seu próprio bairro para que mais pessoas da periferia em que ela vive pudessem chegar ao ensino superior. Desde então, ela luta para cumprir o que prometeu dia após dia e cerca de 300 pessoas já foram alcançadas pelo cursinho.

Maiane e a mãe revisitando momentos do passado/ Foto: Bruna Rocha

Muito do que Maiane Soares leva para a sala de aula é o reflexo do que ela aprendeu na sala de casa com a mãe, Eloina Soares, e a avó, a eterna dona Josefa. Segundo ela, o fato de ter nascido em um lar feminino, especialmente negro e periférico, contribuiu para que ela soubesse se impor diante das adversidades e tivesse um lugar de afeto e acolhimento quando necessário, recarregando as forças para prosseguir em suas metas e objetivos.

RAIZ QUE FRUTIFICA

Com o passar dos anos, as sementes lançadas pela professora Maiane através do Projeto Educacional Raízes começaram a frutificar. Antes mesmo da virtualização do curso, por volta dos anos 2017 e 2018, estudantes de outros seis bairros da região da Suburbana conseguiram integrar o projeto, pois a mensalidade e distância entre as suas casas e o ProjEdur eram muito menores quando comparadas com os cursinhos do centro de Salvador.

Surgimos em 2017 com aulas em espaço educacional particular, alcançando apenas estudantes do bairro de Alto de Coutos, e em 2018 passamos a utilizar espaço público, abrindo espaço para alunos de outros bairros da Suburbana, como Itacaranha, Periperi, Praia Grande, Paripe, Vista Alegre e Fazenda Coutos”.

Mais que um cursinho, o propósito de promover educação gratuita e de qualidade começou a ser um instrumento de transformar a vida de centenas de pessoas. Perseverança, dedicação e organização foram alguns dos elementos essenciais para que o sonho de uma jovem formanda se tornasse realidade e se expandisse de uma pequena comunidade para outros estados do país. 

Nos seus seis anos de existência, e resistência, o ProjEdur recebeu alunos de mais de 30 bairros de Salvador, assim como de algumas cidades da Região Metropolitana e do interior da Bahia, com destaque para Lauro de Freitas, Simões Filho, Irecê, Camaçari, Candeias e Riacho de Santana.

No Brasil, se inscreveram pessoas de Sergipe, alagoas, Pernambuco, São Paulo, Distrito Federal, Minas Gerais, Paraíba, Santa Catarina, Espírito Santo, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Ceará, Rio de Janeiro e Paraná, além do estado de origem do projeto.

FLORA E COLHEITA

Moradora de Escada, um bairro localizado a cerca de 3,5 km da antiga sede do ProjEdur, Júlia Silva foi uma das primeiras alunas do curso. Ela chegou com 18 anos, ainda no ensino médio, e agarrou a oportunidade com unhas e dentes. Com muitos medos, sonhos e incertezas na bagagem, a jovem garota encontrou no projeto a segurança necessária para escolher os passos que daria após sair da escola.

“A minha história com o Projedur começou no ano de 2018, ainda com a modalidade presencial. Nesse mesmo ano eu ainda estava terminando o ensino médio, e junto havia aquela confusão do que iria fazer após o término. Com o auxílio do projeto fui criando os meus caminhos, entendendo mais sobre as áreas que estavam disponíveis e sobre como funcionava a faculdade”, explicou. 

Júlia Silva fez parte da modalidade presencial do ProjEdur/ Fotos: Arquivo pessoal

Apesar de ter planejado uma rota a ser seguida, a vida de Júlia Silva deu algumas reviravoltas e ela teve que recalcular o rumo que tomaria ao chegar à vida adulta. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) sobre educação em 2023, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 40,2% dos jovens entre 15 e 29 anos que abandonaram os estudos indicaram como principal motivação a necessidade de trabalhar. 

Se unindo à estatística das pessoas que precisam deixar o ensino superior em segundo plano por causa da necessidade de se sustentar financeiramente, ela optou por fazer um curso técnico e aguardar pelo momento certo de ingressar em uma universidade.

Optei por fazer o curso técnico de enfermagem, por conta do curto período de duração e para conseguir logo um emprego. No ano de 2023 entrei na faculdade com uma bolsa de 67% e o Projedur é um dos responsáveis por essa vitória”.

Atualmente, Júlia tem 23 anos e está no 2° semestre do curso de Enfermagem na Faculdade de Tecnologia e Ciências da Bahia. Cheia de expectativas, ela espera se formar em 2028 e ajudar muitas pessoas através da sua profissão.

Júlia sonha em ser enfermeira e é apaixonada pelas aulas de anatomia / Foto: Arquivo pessoal

Assim como Júlia, muitos outros jovens encontraram no ProjEdur o direcionamento que precisavam para trilhar o caminho da universidade. Da grande lista de estudantes aprovados, surgiram aqueles que desejavam retribuir a educação recebida e se voluntariaram como monitores do projeto.

De bom grado, eles auxiliaram os colegas de classe e se tornaram agentes de transformação, como foi o caso da estudante Geiele Laiane, que faz Ciências Contábeis, e o Emerson Brandão, que estuda Engenharia Elétrica, ambos na Universidade Federal da Bahia.