Historicamente, a indústria cinematográfica brasileira teve vários altos e baixos. Em épocas de ouro da produção nacional, nasceram vários clássicos como as produções de Glauber Rocha, os títulos Central do Brasil (1998) e Cidade de Deus (2002). Por outro lado, o cinema nacional fica desassistido de políticas públicas, as produções passam pelo processo de censura na Ditadura Militar (1964), e desde o início, a indústria sofre com a inundação de títulos hollywoodianos no mercado nacional. Hoje, os mesmos problemas ainda são encarados, e a falta de verba, investimento e valorização no cinema nacional é uma realidade.
No que se refere à verba, a situação do cinema brasileiro tornou-se ainda mais delicada, quando em 2019, o presidente Jair Bolsonaro cortou 43% do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual da Ancine, deixando as produções audiovisuais com a menor verba em sete anos. Com a chegada da pandemia de Coronavírus, no final do mesmo ano, a indústria cinematográfica ficou entre os setores que foram afetados. Nesse caso, tanto pela interrupção de produções, quanto pelo fechamento de salas devido às medidas de quarentena e isolamento social, estabelecidas por governos para conter o avanço da pandemia.
Antes da pandemia, a quantidade de salas de cinema no Brasil estava em crescimento, porém, devido à paralisação, esses números despencaram e muitas salas de cinema deixaram de existir, tornando ainda mais deficiente o mercado cinematográfico no país. Em 2020, a receita de bilheteria ficou em torno de R$ 630 milhões, com um público de salas de cinema de 39 milhões de espectadores, uma redução de 77% em relação a 2019, tanto em público quanto em receita (dados SCB).
Além disso, filmes brasileiros precisam disputar o espaço com os grandes blockbusters hollywoodianos. De acordo com o Informe Anual Preliminar de 2021, divulgado pela Ancine, as obras nacionais representaram apenas 1,8% da bilheteria de 2021, reduzindo 90% sua participação em relação a 2020. Se em 2020 um único título – Minha mãe é uma peça 3 – foi responsável por cerca de 98% do público total dos filmes brasileiros, em 2021 não houve um blockbuster nacional que ocupasse mais de mil salas no lançamento. Em que pese à boa bilheteria alcançada por Marighella e Turma da Mônica – Lições, a falta de um lançamento nacional que ocupasse um grande circuito de salas de cinema em 2021 impediu que os filmes nacionais recuperassem seu público e aumentassem sua participação no mercado.
Em abril de 2022, temos o primeiro grande filme brasileiro estreando no cinema. Medida Provisória, primeiro longa dirigido por Lazaro Ramos, tem o roteiro baseado no sucesso teatral brasileiro Namíbia, Não!, de Aldri Anunciação — e nos mostra um pesadelo assustador que joga em uma determinação governamental de “devolução” de afro-brasileiros (as pessoas de melanina acentuada) toda a ojeriza que um país racista têm sobre a população negra.
Medida Provisória foi lançado em apenas 188 salas de cinema brasileiras no dia 14 de abril. Devido à grande a demanda do público, o filme atingiu um pico duas semanas após sua estreia, sendo exibido em 365 salas de cinema no Brasil. Em comparação, a produção americana Doutor Estranho no Multiverso da Loucura entrou em cartaz em 2.260 salas de cinema ao redor do Brasil, o que representa cerca de 67% do total de salas disponíveis em território nacional (3.378 salas) de acordo com levantamento da Ancine em 2021. Apesar da baixa distribuição, o longa ultrapassou a marca de 237 mil espectadores no Brasil em apenas duas semanas, segundo dados da Comscore.
Em entrevista para o podcast Cena Aberta do Gshow, Lázaro Ramos, diretor e corroterista de Medida Provisória, comemorou o sucesso do filme embora estivesse competindo com grandes produções hollywoodianas: “A gente tem dois grandes blockbusters que tomam muitas salas, então a gente não tem a quantidade de salas ideal, mas as que temos estavam lotadas. Isso para mim é algo histórico”.
A falta de cuidado com as produções nacionais não se limita apenas a má distribuição dos filmes nas salas de cinema brasileiras. O diretor denunciou ainda o destrato sofrido pelos espectadores de uma sessão do filme: “Teve um cinema que na sala do Medida Provisória todo mundo estava morrendo de calor, com o ar-condicionado desligado. Na sala do lado tinham 10 pessoas assistindo ‘o filme do bruxinho’ e o ar-condicionado estava ligado. Não há nada que explique isso, é uma falta de prestígio”, afirmou o diretor.
Além disso, Lázaro também diz que está recebendo denúncias do público onde afirmam que cinemas estão anunciando sessões de Medida Provisória que não existem.
Ao comentar sobre a má distribuição de filmes nacionais nos cinemas brasileiros, Lázaro afirma ter observado filmes nacionais de grande bilheteria ser substituídos subitamente nas salas de cinema, questionando se o problema é realmente a falta de demanda ou se é a priorização das grandes produções internacionais: “Nada contra os filmes hollywoodianos, mas se a gente tem um público que quer assistir e a gente pode fortalecer a indústria nacional, eu não entendo por que a gente permita que isso aconteça, isso é uma das coisas que precisamos discutir seriamente”, comenta.
Em seu perfil no Twitter, Taís Araújo, protagonista de Medida Provisória, comentou sobre a distribuição do filme nos cinemas brasileiros:
“É muito importante que os donos das salas de cinema saibam que existe sim público para cinema nacional, do contrário é capaz do filme passar em poucas salas”, afirmou a atriz.
Crescimento do interesse do público em obras cinematográficas nacionais
Observando a comoção gerada pelo filme nas redes sociais e a lotação das salas disponíveis, fica claro o interesse do público pela produção, mas devido a má distribuição do filme, muitas pessoas não poderão viver a experiência de Medida Provisória nos telões.
A diretora e roteirista de 22 anos, Ana do Carmo, que teve seu curta-metragem Frutos da Lua selecionado para o Festival de Cannes em 2018, contou sua opinião sobre a razão do sucesso dos filmes hollywoodianos no Brasil e afirmou que o público brasileiro está cada vez mais interessado em filmes nacionais.
Ana acredita que o sucesso das produções norte-americanas se deve ao fato de o público enxergar aquele universo como algo que deve ser alcançado, fruto da idealização do estilo de vida estadunidense:
“Essa necessidade que temos de consumir cinema hollywoodiano na verdade é uma extensão da nossa criação, de se espelhar em algo que não é nosso. Esse desejo de querer ter uma experiência humana universal faz com que mantenhamos essa relação com esse espelho, mas que nunca conseguimos nos identificar com ele”.
Ana do Carmo também observa que, mesmo com toda a demanda das produções internacionais, o público brasileiro está aprimorando seu olhar crítico, e está cada vez mais interessado em produções nacionais, na busca por identificação e pertencimento: “Mesmo ainda sendo um cinema que tem muito mais gente pra se consumir, quando pensando nos processos históricos, a gente está num novo processo de tentar consumir cada vez menos o cinema hollywoodiano, para conseguirmos pensar em novas possibilidades narrativas e superar a autonegação da nossa própria história”.
“Quando a gente começa a ver diferentes cinemas, a gente se coloca no diálogo e conhece novas histórias”, completou a cineasta.
Sucessos como Medida Provisória, Marighella e o premiado Bacurau mostram que existe demanda no cinema brasileiro para produções que não sejam apenas de comédia, e que com investimento e boa distribuição, esses filmes podem alcançar proporções inimagináveis.
Medida Provisória é o filme nacional mais aclamado de 2022, com 92% de aprovação no Rotten Tomatoes e ainda está em cartaz em alguns cinemas de Salvador.