Universalização do saneamento: meta ainda deve esperar

47,8% da população baiana ainda vive sem saneamento básico, conforme dados do  Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 

Leticia Alvarez e Millena Marques

Quase metade da população da Bahia ainda vive sem acesso ao esgotamento  sanitário por rede geral ou pluvial. Dos 14,14 milhões de habitantes, 6,7 milhões, ou  47,8% da população, não possuem saneamento básico, conforme dados do Censo  2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Embora a meta do plano de política nacional seja universalizar os serviços até 2033, o governo estadual tem  deixado a Bahia longe de atingir esse objetivo, conforme apontado na análise do Tribunal de Contas do Estado (TCE). 

As principais críticas do TCE à governança da Política Estadual de Saneamento Básico são  as ausências do decreto de regulamentação e de um plano estadual sobre o tema – este é obrigatório desde 1989, mas a previsão é que só seja finalizado neste ano. 

Apontadas pela equipe de auditoria da Corte de Contas, as irregularides demonstram  a ausência de mecanismos de atuação e diagnósticos, o que dificulta a execução da  política públicas. As ferramentas, se utilizadas de maneira eficaz, seriam essenciais para atingir os resultados esperados pela Lei nº 11.445/2007, com a nova redação da Lei nº 14.026/2020, que estabelece metas nacionais de atendimento de 99% da população com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgotos até 2033.

Não é preciso ir muito longe para identificar problemas envolvendo saneamento básico.  No bairro de Areia Branca, situado em Salvador, a dona de casa Maiane Conceição, 26 anos, vive sem rede de esgoto há mais de 15 anos. A água utilizada na residência dela é escoada diretamente na rua. “É muito difícil viver assim. As crianças brincam na lama, vamos dizer assim, porque o esgoto passa na rua. É muito complicado”, contou Maiane, que é mãe de  duas crianças. 

A dona de casa mora na Rua do Trabalhador. Quem pisa os pés no local sente de longe os resquícios da ausência de um tratamento adequado. Quando chove, os dejetos são misturados com a água.

 “A gente coloca a água do banheiro, da pia, tudo para escorrer na rua. As crianças ficam a mercê disso, pisando nessa mistura”, complementou. 

No caso da bacharel em Direito Maria Lúcia Costa, 33, que também mora em Areia  Branca e é representante da Central Única das Favelas (Cufa) no bairro, a tubulação responsável pela água, que é consumida dentro de casa, rompe com uma certa  frequência porque fica acima do nível da rua. 

“O tubo acabou ficando raso. Quando ele estoura, a água acaba sendo contaminada com urina de cachorro, enfim. Sinto que os meninos ficam doentes com muita frequência, com diarreia e etc”, relatou. 

Litígio

O saneamento básico é de responsabilidade de muitos órgãos públicos, incluindo governos Federal, Estadual e Municipal. No entanto, alguns casos têm especificações. O Sindicato de Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente da Bahia (Sindae-BA) afirma que o Estado da Bahia é o gestor dos serviços de água e esgoto em Salvador, visto os termos do Acordo firmado entre o Município de Salvador e o Estado da Bahia, em 1925 e ratificado em 1929, onde o Município transfere ao Estado a gestão dos serviços.

O conjunto de serviços do saneamento básico também deveria, portanto, ser garantido com qualidade ao bairro, que faz parte da capital baiana. A localização dele ainda confunde visitantes e moradores, pela proximidade com o município de Lauro de Freitas, mas ele é oficialmente soteropolitano. “Não existem bairros que pertencem ao mesmo tempo a dois municípios. Agora, se a pessoa mora dentro dos limites oficiais de Areia Branca ou não, é uma outra questão”, disse Mariana Viveiros.



Bruna dos Santos tem 23 anos e mora na região desde que nasceu. Para ela, as dificuldades ultrapassam a queda de água na rua e a formação de lama nas ruas em tempo de chuva. A moradora também narra que água da torneira, por exemplo, tem uma quantidade significativa de cloro.

Apesar do cloro não ser perceptível a olho nu, o excesso do gás usado na cloração – método descrito pela Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional da Bahia como um processo de purificação da água a partir do agente oxidável para torná-la potável – pode resultar em alterações no cheiro e no sabor, além de colocar em risco a saúde de quem a consome.

De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), a Bahia possui uma cobertura de 81% da população com abastecimento de água e de 42% com esgotamento sanitário, índices que precisam subir para 99% e 90%, respectivamente, de modo que o estado alcance as metas de universalização impostas pela legislação federal. Além disso, o estado possui um índice de perda de água potável de 43% (a média nacional é 38%) e apenas 49% do seu esgoto gerado é tratado (a média nacional é 52%).

A garantia ao saneamento está relacionada diretamente com o direito constitucional da dignidade da pessoa humana e é um serviço essencial para a qualidade de vida.

“É uma questão de justiça social e respeito à dignidade humana. É preciso assegurar que todos os cidadãos tenham acesso a condições mínimas de higiene e salubridade, em linha com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (Organização das Nações Unidas”, disse Bruno Ventim.

Saneamento básico e saúde

A ausência de saneamento básico adequado aumenta o risco de uma série de doenças, principalmente doenças infecciosas, conforme aponta o médico infectologista Robson Reis, docente da Escola Bahia de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). “Essas doenças podem ter influência principalmente na mortalidade infantil, baixo peso dessas crianças, consequentemente um baixo desenvolvimento físico ou neuropsicomotor. Na população adulta ou até na população idosa, pode acarretar também uma série de doenças, sinais e sintomas, como diarreia, dor abdominal, náuseas, vômitos”, explicou Reis.

Entre as doenças mais comuns causadas pela falta da política estão as transmitidas por água e alimentos, chamadas de DTAS; doenças virais, como a Hepatite A; doenças bacterianas, como salmonella, shigella, leptospirose e cólera. “E, infelizmente, (doenças associadas à falta de saneamento) pode causar também internamentos hospitalares, podendo esses pacientes até mesmo ir a óbito”, complementou Reis.

Um levantamento do IBGE indicou que, em 2022, o Brasil registrou cerca de 9,5 mil mortes atribuídas a saneamento inadequado, fonte de água insegura e falta de higiene. A pesquisa, feita com o cruzamento de dados do Ministério da Saúde, foi apresentada na publicação “Criando Sinergias entre a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e o G20” e é a mais recente sobre o assunto. A reportagem não conseguiu levantar o recorte estadual.

Das 9.463 mortes, 79,2% eram de idosos com mais de 60 – o que equivale a 7.492 pessoas. Na sequência, aparece as crianças de zero a quatro anos, que totalizaram 694 mortes, 7,3% do total.

Pequenos avanços

Em 2010, os dados do IBGE indicaram que 7,04 milhões pessoas estavam sem acesso à rede geral, nem pluvial nem a fossa séptica – esse número representava 50,4% da população baiana daquele ano. De lá para cá, pouco mais de 300 mil conseguiram ser assistidas.

O Censo Demográfico do IBGE ainda não possui o perfil das pessoas que mais
sofrem com a ausência do serviço nos municípios baianos. Segundo Mariana, no entanto, é sabido é que as capitais dos estados e as grandes cidades possuem uma cobertura maior em relação à média do estado. “São cidades mais estruturadas, que já possuem rede pluvial. Então, é mais fácil fazer a coleta adequada. Mas, mesmo nessas cidades, a gente desigualdades. As áreas de baixa renda tendem a ter uma cobertura menor”, explicou.

O atendimento da coleta de esgoto adequado também é diferente entre áreas urbanas e rurais. “30% dos municípios baianos ficam em áreas rurais. Essas são áreas em que a cobertura é menor pelas razões citadas no áudio”, completou Mariana. Áreas de povoamento mais recentes e de invasões também são afetadas com a falta da política.

O mapa mostra a situação por município no estado. A variável é o % de pessoas em domicílios com coleta de esgoto por rede ou fossa séptica ligada à rede. Quanto mais claro o rosa, menor a proporção de atendimento. Fonte: Censo 2022, IBGE.

Sem autonomia

Outra crítica do TCE aponta a falta de autonomia e independência da Agência Reguladora de Saneamento Básico do Estado da Bahia (Agersa), subordinada à Secretaria de Infraestrutura Hídrica e Saneamento (SIHS). A Agersa é responsável por fiscalizar a Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa), fornecedora de água para 90% dos municípios baianos e serviço de esgoto para 25% deles.

Segundo Bruno Ventim, a falta de autonomia da agência compromete a imparcialidade de suas decisões e reduz a efetividade da fiscalização, por interferências indevidas. O resultado é a perda de credibilidade junto à opinião pública.

A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Infraestrutura Hídrica e Saneamento, via e-mail, nos dias 21 e 22 de agosto, mas não obteve posicionamento até a publicação desta matéria. A Agersa também foi procurada, mas não respondeu. Já a Embasa, por meio de nota, informou que está “preparada, com diretrizes sólidas de captação e execução de recursos, para cumprir o desafio de universalizar, até 2033, a prestação dos serviços de água e esgotamento sanitário nos municípios com contratos em vigor”.

“Os auditores constataram a ausência de quadro de pessoal permanente (equipe basicamente composta por Redas e comissionados), de ações de fiscalização indireta, de processo sancionatório definido e implantado, de arrecadação e gerenciamento das suas receitas, entre outros”, relatou ela.

Além disso, a estatal disse que deverá executar até 2033 aproximadamente R$ 20 bilhões de investimentos, sendo R$ 12 bilhões provenientes de geração de caixa próprio e R$ 8 bilhões de recursos de terceiros, para alcançar a meta em toda a sua área de atuação.

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